2007-09-01

CONVERSAS DE RUI E LUÍS

UMA GRACINHA CIENTÍFICA
Pois é meu caro, é engraçado como as ciências acabam por concorrer para que possamos compreender até os próprios textos sagrados. E não me refiro apenas aos contributos das técnicas historiográficas e arqueológicas que, tendo conhecido avanços consideráveis nos últimos trinta anos, tanto têm contribuído não só para que se consigam ler e interpretar melhor as fontes escritas quer as conhecidas quer as que se vão descobrindo, como ainda para que sejamos capazes de procurá-las melhor e mais certeiramente no terreno –salvo seja a expressão- de tal modo que as descobertas relativas ao passado aumentaram estando já ao nosso alcance em situações anteriormente inacessíveis. Direi até que estas inovações e avanços nestes domínios científicos, sem querer estar a retirar-lhe a importância que definitivamente têm para a nossa capacidade de reconstituição de outros tempos, serão de somenos em face de outros bem mais decisivos.
Tomemos o caso da genética.
Trata-se de um ciência que à semelhança de outras vem do século dezoito, com as experiências de Mendel que foi o primeiro a compreender e tentar explicar os mecanismos e as características da hereditariedade, muito embora, igualmente em paridade com as congéneres, decorra de práticas empíricas do quotidiano de que aqueles que se dedicaram à agricultura e à criação de gado há muito foram intérpretes quando cruzavam espécie vegetais para obter planta melhores e mais robustas ou espécie animais para seleccionar os melhores e mais produtivos.
Mas da insipiência dos primeiros anos e dos reduzidos avanços dos primeiros séculos, os desenvolvimento tecnológicos das últimas décadas possibilitaram que de afirmações meramente teóricas aquela ciência tivesse ganho o estatuto respeitável da capacidade de comensurar, comprovar empiricamente e conseguir previsões –se bem que estas não em relação a dados futuráveis mas sim no referente àqueles que estão em estudo. Ilustrando, não é possível ainda prever o sentido da evolução da nossa espécie –provavelmente nunca o será- mas já é possível em face de determinados dizer que se espera encontrar isto ou aquilo em determinado lugar.
Ora hoje estamos perante uma ciência que já se revela capaz de contribuir para que se faça a história das populações humanas –estamos só a falar em termos da humanidade- e que já conseguiu proezas tão relevantes como a identificação do genoma humano ou, por exemplo, dar contributos decisivos para que sejamos capazes de compreender o que nos separa das outras espécies hominídeas que no passado viveram antes e em comum com aquela a que pertencemos.
Ainda antes de concluir a ideia que esbocei no primeiro parágrafo e que por ser de certo modo poética quero deixar para um remate final deste âmbito, deixa que te fale de uma curiosíssima descoberta que esta Ciência permitiu nos últimos anos.
Faz a pergunta: que distingue o Hommo Sapiens Sapiens que somos nós do Hommo Sapiens Neaderthalensis ou do Hommo Erectus?
O que a genética nos permite é que andemos para trás e começamos a dar conta daquilo que herdámos das espécies anteriores e portanto aquilo que é comum a todas. Desse modo mas inversamente, deixa em destaque as características que sejam apenas nossas isto é, as últimas que a evolução revelou na árvore genealógica da nossa espécie e que poderemos tomar como aquelas que nos distinguem dos nossos antepassados.
Assim e para não ser muito maçador, podemos ver, por exemplo, que a postura bípede foi herdada de espécies mais antigas e que antecederam o próprio aparecimento da nossa em alguns milhões de anos. Os Australopitecus, tanto os gráceis como os robustos, eran já portadores dessa capacidade que os outros símios não possuem, a de caminhar erecto e de fazer dessa postura o meio de locomoção habitual na prática do dia a dia. Sabe-se isso pois alhures em Laetoli, na actual Tanzânia, a antropóloga Mary Leakey descobriu em mil novecentos setenta e seis os vestígios de pegadas de um grupo de três animais que caminharam erectos sobre uma camada de cinza vulcânica fresca que lhes preservou os passos e com isso nos permite compreender que aqueles só podem ter sido dados por alguém com uma tal postura no caminhar. Ora isto terá sucedido há três milhões de anos.
Mas o estudo comparado dos crânios das várias espécies homo e as anteriores, com o cruzamento desses dados com a mais recentes conclusões a respeito das diversas áreas do cérebro humano e das funcionalidades a que correspondem que o desenvolvimento tecnológico e científico possibilitaram, viabilizaram a descoberta de que certas capacidades como a capacidade de precisão e pensamento abstracto ou o a capacidade de rir, não existiram desde sempre, antes pelo contrário, revelaram-se como atributos que surgiram nas diferentes espécies e que por via da herança genética foram transmitidas àquelas que se lhes seguiram. Assim e para considerarmos apenas estes dois casos por economia de espaço, se o Homo Erectus de quem parece descender a nossa espécie de Sapiens, era já capaz de pensamento abstracto e de prever o efeito de uma acção, como o demonstram as ferramentas líticas que nos deixaram, já o mesmo não se pode dizer da capacidade de riso que terá surgido apenas os primeiros antepassados que hoje designamos por sapiens, tal como aconteceu com a fala que, só por curiosidade, segundo a hipótese de Bryan Sykes –um geneticista britânico coevo- terá começado pelo canto.
Desta maneira e seguindo a linha de raciocínio que tenho exposto, nenhuma destas pode ser considerada a característica eminentemente exclusiva da nossa espécie de sapiens sapiens uma vez que as possuímos em comum com os nossos antepassados de que temos falado.
E existe alguma que seja apenas nossa, alguma que apenas sejamos capazes de identificar na nossa espécie e em nenhuma outra das que nos antecederam?
Ora a resposta é positiva e –Bingo!- máximo da curiosidade, diz respeito à capacidade de formular pensamento religioso. Tudo aponta para que apenas o cérebro do Homo Sapiens Sapiens trouxesse a massa em que se processam esse género de pensamentos e conhecimento. É pois a característica eminentemente humana do ponto de vista moderno e o modo como o chegamos a poder alvitrar decorre do facto de nenhum dos crânios das espécies anteriores revelar a fisionomia própria da sua existência, coisa que naturalmente acontece connosco e os nossos mais remotos avós que há mais de cem mil anos terão surgido, alhures em África.
É mais uma gracinha da história, neste caso a Natural. Se nos recordarmos do positivismo do século dezoito e das consequências que o mesmo teve para o aprofundamento do materialismo e da oposição que por via deste se quis ver entre o pensamento científico e o religioso e, pior um pouco, como o melhor testemunho da caducidade e inferioridade desta segunda maneira de pensar o mundo.
Não é espantoso que tenha sido a ciência a comprovar que afinal a religiosidade, a nossa capacidade de crença numa entidade superior e causa primeva, seja a característica que nos singulariza enquanto espécie humana relativamente a todas as outras da nossa árvore comum? Mas assim é e apesar de sabermos que as afirmações científicas têm, por natureza, um carácter provisório, aquilo que podemos dizer é que até prova em contrário é essa uma descoberta corroborada empiricamente pelo que a tomamos como boa e verdadeira. Provavelmente assim continuará pela noite dos tempos.
E creio ter explicado aquilo que me pediste; a justificação para a afirmação de que as Ciências, o olhar científico, não são incompatíveis com a atitude religiosa, o olhar religioso sobre o mundo. Achas que o consegui?
Resta pois resolver o primeiro parágrafo e aqui entro num discurso poético e muito pessoal que apenas pretende registar uma observação puramente teórica.
Trata-se do mito da origem na tradição judaico-cristã, a nossa mãe comum a que chamamos Eva.
Será que os Autores dos textos sagrados teriam no ouvido ecos de tempos muito remotos quando um ou vários deles escreveu ou escreveram o Livro do Génesis?
É que hoje sabemos que as modernas populações humanas descendem de um grupo que há mais ou menos oitenta mil anos terá abandonado o continente africano e demandado as terras da península da Arábia através do Mar Vermelho que seria então mais estreito do que é hoje em dia. Seria um bando que incorporou várias mulheres, mas entre elas não teria havido uma de quem descendessem a maioria daqueles indivíduos? E se essa segunda mãe seria uma Eva técnica, digamos assim, não terá havido uma mulher que por ter sofrido as mutações que nos distinguem da primeira espécie sapiens e as ter transmitido geneticamente aos seus filhos e demais descendentes, possa ser considerada a verdadeira Eva, a primeira mulher de que em certa medida nos fala a história do primeiro casal humano?
São pois estas pequenas notas de que me sirvo para acrescentar ao nosso diálogo aquilo que me pediste. Faço votos para que seja inteligível e do teu e do agrado de todos os outros que as lerem.

Luís F. de A. Gomes
Pêra, 17 de Agosto de 2007