2007-03-17

ENTREVISTA POSSÍVEL COM SOMERSET MAUGHAM (*)

Para o
Joaquim Nobre,
pela dívida infinita que temos para com ele,
por tudo o que tem feito para trazer a Arte
a este espaço humilde.

“-Boa noite, Sr. Somerset Maugham ou devo dizer Doutor Somerset Maugham, afinal V. Exª. tirou um curso de medicina.”
“-Sim, é verdade, mas deixemos os formalismos; afinal eu já não estou no mundo dos vivos e na verdade, na época em que me formei, o curso de medicina era ministrado no hospital escolar de Londres e não em qualquer Instituto ou Faculdade de Universidades, como hoje, não conferindo, por isso, o grau de licenciatura como actualmente acontece. Assim nunca ninguém me tratou dessa forma e para além disso, como o senhor certamente sabe, eu nuca exerci medicina.”
“-Porquê? Não gostou do curso?”
“-Não foi esse o caso. A minha alternativa evoluiu no sentido da literatura. Publiquei o meu primeiro romance ainda estudante da escola de médica.”
“-Foi publicado em português sob o título “Liza a Pecadora”.”
“-Exactamente. Mas como estava dizendo, um pouco para minha surpresa o livro teve um acolhimento favorável. Vendeu bem, para um primeiro livro de um jovem autor, evidentemente e os críticos não se mostraram severos. Ora isso levou-me a decidir, em definitivo, pela carreira literária.”
“-Medicina, literatura, parece ter sido um jovem um pouco indeciso, não?”
“-Não, pelo contrário. Foi um tio que ficou encarregado da minha educação quem insistiu para que eu seguisse uma carreira séria. Foi por isso que escolhi medicina pois havia a possibilidade de me fixar como médico na vila onde o meu tio vivia e era pastor.”
“-Mas sentia o chamamento das letras e das artes literárias.”
“-É verdade. Eu fui um menino e mais tarde um rapaz muito solitário. Vivi em França e aí fui educado até aos dez anos, pois o meu pai era conselheiro jurídico da embaixada inglesa em Paris. Compreende que não podia ter tido sólidas e duradouras amizades numa meninice em que frequentei colégios de outro país e aí estudei como estrangeiro.
Acresce o facto da minha orfandade precoce. Minha mãe faleceu ainda antes da minha alfabetização e o meu pai expirou quando eu tinha dez anos.
Vi-me então em Inglaterra, numa pequena vila do condado de Kent, estudando num colégio onde os outros miúdos troçavam da minha pronúncia vincada pela minha experiência francesa.
Não tive motivos para ser uma criança muito relacionada e talvez por isso descobri muito cedo o meu gosto pela escrita, até como uma forma de expressar e ordenar as minhas ideias.
Esse gosto que então era uma espécie de hóbi, acompanhou-me ao longo de toda a minha adolescência e depois de ter rabiscado uma série de pequenas histórias e outros textos, o meu primeiro romance, no início da minha juventude, foi, para mim, um acontecimento natural.”
“-E o que sentiu quando publicou o seu primeiro livro? Sentiu-se orgulhoso, sentiu uma certa vaidade?”
“-Não, nada disso. Tive uma grande sensação de alívio.”
“-Vamos escutar um pouco de música.”
“-Tenha o meu jovem amigo o obséquio de escolher.”
“-Gostou desta música?”
“-Não a entendo, compreende? Embora tenha falecido em sessenta e quatro, já depois dos Beatles terem editado e serem um sucesso, não só em Inglaterra.”
“-Quem lhe escuta as palavras dirá que você foi um admirador dos Beatles.”
“-Não, nem os conhecia na altura. Tive o meu óbito aos noventa e um anos e embora tenha sido sempre saudável, não seria aos oitenta e tantos que me iria manter ao corrente de um agrupamento musical da juventude de então.
Mas eu adorei ter vivido. A vida é uma aventura fascinante.”
“-O que o seduziu na sai vida?”
“-Uma das coisas que mais me seduziram na vida foi o conhecimento e não me refiro apenas à chamada erudição, digamos assim. Estou a pensar inclusivamente em informação mais ligeira e digo-lhe sem complexos, desde a última moda literária ou de pintura, até aos mexericos de salão e alcova.
Sempre gostei de estar vivo e isso implica estar a par dos acontecimentos que nos rodeiam. Assim, compreende, apesar de há já vinte e cinco anos ser um espírito, é natural que me mantenha informado.”
“-Teve uma vida longa e de certo modo aventurosa. O que lhe deu maior prazer ao longo desse percurso?”
“-Escrever, naturalmente.”
“-E para além da escrita?”
“-Viajar. Só assim consegui ver o maior número possível de diferentes seres humanos. Como lhe disse, observar a vida humana foi para mim uma aventura fascinante.”
“-Viajou muito, não foi?”
“-Sim, um pouco por todos os continentes habitados. Fiz algumas viagens prolongadas, nomeadamente às actuais Birmânia e Tailândia…”
“-Que até foi mote do livro traduzido para a nossa língua pelo título de “Cavalheiro de Salão”.”
“-Isso mesmo. Mas fiz outras, pela China e as ilhas dos mares do Sul e no continente americano. Para além dessas grandes viagens que consistiam em longos meses deambulando em terras estrangeiras, geralmente de acordo com os meios de transporte disponíveis entre as populações locais, para além dessas grandes viagens, dizia, deslocava-me frequentemente entre os meus locais de residência e outros.
Na realidade vivi grande se não a maior parte da minha vida no estrangeiro. Certamente sabe que, já escritor consagrado, me presenteei com uma villa na Riviéra francesa onde estabeleci a minha morada permanente.”
“-Mas o Senhor não se limitou a deambular de um lado para o outro. Teve experiências tão diferentes como a espionagem e o internamento em sanatório.”
“-Espionagem é um termo muito forte. Executei algumas missões para os serviços secretos do exército britânico durante a primeira guerra mundial. Mas trataram-se de tarefas muito simples, como, por exemplo, a passagem de informação ou o estabelecimento de contactos.
Tratou-se de facto de uma experiência bastante interessante e embora atribulada, tal como, e isto apesar do que disse anteriormente, muitas vezes difícil, posso dizer agradável.
Em parte por causa dessas movimentações sofri um pequeno problema pulmonar e vi-me forçado a entrar numa casa de repouso onde contactei com o ambiente do sanatório numa época em que a tuberculose era letal. Foi uma experiência humana muito profunda.”
“-O Senhor foi feliz.”
“-Sem margem para dúvidas.”
“-E o sucesso como escritor surgiu de imediato com “Liza a Pecadora”?”
“-Não. O meu segundo romance não teve eco. Estava então em Sevilha, vivendo o amor com uma bela andaluza e escrevia pequenas histórias para jornais e revistas que me possibilitavam uma existência não muito farta. Foi um período em que, já novamente em Londres, escrevi peças de teatro que me consolidaram o nome como autor e me trouxeram os primeiros rendimentos interessantes.
Mas não demorou muito à minha consagração como romancista, o que sucedeu com a publicação de “Mrs Cradock”, logo no início do século, era eu ainda um jovem escritor.”
“-Depois, obras como “Um Gosto E Três Vinténs”, “O Fio da Navalha”, “A Servidão Humana”, consagrá-lo-ão como um dos grandes romancistas de sempre em todo o mundo. Concorda com esta afirmação?”
“-Sem falsa modéstia e muito menos com pretensiosismo, concordo com essa afirmação. Defini e escrevi todas as minhas histórias de acordo com uma metodologia determinada e correctamente utilizada e criei uma ficção que entretinha o leitor sem o impedir de pensar pela própria cabeça e simultaneamente, sem deixar de lhe apresentar, para reflexão, certas questões componentes da vida que os homens mantêm em conjunto.
A meu ver, isso já de si é ser um grande escritor, mas para além disso, como viajei bastante, fui capaz de apresentar personagens que embora maioritariamente inglesas, viviam nas mais variadas paragens enfrentando modos de vida bastante variados.
Finalmente, fui um escritor que percorreu os diferentes tipos de ficção, desde o romance histórico…”
“-Maquiavel e a Dama”, por exemplo.”
“-Sim, mas também a “Catalina”. Mas o que eu estava a dizer é que escrevi desde o romance histórico às pequenas histórias, passando pelo romance clássico e o policial, até à literatura de viagem e de intriga internacional, como por exemplo, “O Agente Britânico”.
Penso que isso é ser um grande escritor e como não são bastante numerosos os escritores que reúnem todas essas variantes, não deverá ser falso dizer que fui dos grandes escritores mundiais de sempre, embora, como deve compreender, nunca o tenha dito em vida.
Agora posso dizê-lo pois não sou o melhor exemplo de uma parte interessada no caso.”
“-Mas é precisamente nesses aspectos que referiu que surgem muitas críticas à sua obra literária. Diz-se que V. Exª. quis falar de muita coisa e acabou por falar de nada.”
“-Isso é uma perfeita idiotia. Eu limitei-me a descrever as situações e as personagens como elas acontecem na realidade. Eu escrevia sobre aquilo que via. E só pode dizer que a minha obra não trata de questões profundas quem nunca tenha lido nenhum dos meus livros e qualquer um serve de exemplo. Não fiz filosofia de cordel que não chega a ser literatura nem aquela, quando realizada por esta, chega a ser um pequeno opúsculo de filosofia.
De qualquer forma, as personagens e situações que ficcionei remetem para problemas profundos. Veja-se, por exemplo, o caso de “As Férias de Natal” ou a novela “Chuva” ou ainda “O Véu Pintado” e “A Outra Comédia”, só para citar alguns casos.”
“-Refuta então a acusação de superficial.”
“-Faz-me rir. Dita por intelectuais de proa é sempre um bom espectáculo de hilariedades.
Então não podemos reflectir sobre as motivações que levam alguém à vida de revolucionário, no primeiro daqueles romances? Ou não podemos pensar na hipocrisia no seguinte?
Eu simplesmente queria retratar a realidade.
É claro que não me ficava por aí. Mas preferi que as combinações pelas quais fiz essas representações fossem elas símbolos que levassem o leitor a fazer as suas próprias reflexões sobre determinadas questões. Não seria elegante impor unilateralmente o meu ponto de vista ao leitor.”
“-Uma última pergunta. É verdade que quis denegrir a imagem de Paul Gauguin em “Um Gosto E Três Vinténs”?”
“-Que disparate. Seria uma perfeita falta de educação. Simplesmente utilizei certos pormenores que me foram dados a conhecer sobre a vida de tão grande pintor. Mais nada.”
“-Gostámos de ter estado consigo esta noite. O nosso programa radiofónico ganhou um brilho que jamais teve.”
“-Sou eu que agradeço. Muito boa noite a todos.”

Sebastião Sorumenho
(*) Entrevista inventada a partir das seguintes obras: "A Casuarina", "Cavalheiro de Salão", "Chuva e Outras Novelas" e "Exame de Consciência".

2007-03-03

ESBOÇO DE UM MÉTODO

Do Lugar ao Espírito do Lugar

O lugar na fenomenologia adquire uma dimensão existencial, tal como o espaço, não bastam só as referências físicas do lugar, temos que analisar o lugar segundo a sua simbologia e acima de tudo pelo seu carácter, que dá a dimensão existencial. Só assim percebemos o lugar na sua verdadeira essência, pois não é através da ciência que descobrimos a nosso dimensão existencial, mas através das analogias, um bom exemplo é a obra de arte, que retrata as profundezas da existência humana. Situarmo-nos num lugar pressupõe, ou devia pressupor, uma escolha existencial[1], estando de acordo com as nossas funções psicológicas da orientação e da identificação com esse lugar. Estando o conceito de Habitar intimamente relacionado com o “prise existencial”, sendo essa a intenção da arquitectura, habitar o lugar, dando-lhe significado e vida.
Esta preocupação com o lugar, dando-lhe uma dimensão existencial, vem da antiguidade, denominado como Genius Loci, o espírito do lugar, que os romanos acreditavam na existência protectora do lugar e do ser, era a partir dessa premissa que se adquiria a essência e o carácter do lugar, por exemplo um campo militar romano, de forma quadrada, era considerado um espaço de ataque mas simbolizando a ordem cósmica, o Homem está no lugar não no sentido geométrico mas no sentido existencial, sagrado[2], em que cada aspecto tem o seu carácter e significado, fazendo parte do seu quotidiano, portanto fazer e pensar arquitectura, segundo Norberg-Shulz no seu livro “Genius Loci”, significa uma visualização do Genius Loci[3], estão indissociáveis uma da outra, tornando o “habitat” um ponto de abrigo e segurança.
Este conceito de habitar, varia de lugar para lugar, de cultura para cultura, cada um de nós tem a sua maneira de estar no mundo, mas o que temos em comum é a necessidade que temos de nos abrigarmos e de nos identificarmos com o meio. Pois a nossa existência quotidiana acontece com fenómenos concretos, cabe-nos a nós dar simbologia e carácter a esses fenómenos, através das nossas emoções, que são o facto e conteúdo da nossa existência.
Norberg-Shulz divide a existência em fenómenos naturais[4], entendendo-se como o Homem, os animais, as pedras a água, etc., e fenómenos artificiais[5] que são as coisas que o Homem constrói para sobreviver e ter uma maior qualidade e vida, com este conceitos procura uma inter-relação, e dando-lhe a mesma importância, pois necessitamos tanto das coisas naturais como artificiais, uma não pode sobreviver sem a outra.

Maribel Sobreira, Feijó, 12 de Fevereiro de 2006

In, Materialização da Ideia – Esboço de um método com o traço de Mondrian, Lisboa 2006.
Notas:
[1]Eliade, Mircea, O sagrado e o Profano, Edições livros do Brasil, pág. 48 “ « Situar-se» num lugar, organizá-lo, habitá-lo –são acções que pressupõem uma escolha existencial (...).”.
[2] Eliade, Mircea, O sagrado e o Profano, Edições livros do Brasil, pág. 64 “Seja qual for a estrutura de uma sociedade (...), a habitação é santificada, porque constitui uma imago mundi e o mundo é a criação divina.”.
[3] Norberg-Schulz, Christian, Genius Loci, Paysage, Ambience, Architecture, Pierre Mardaga éditeur, pág.5 “ Faire de l’architecture signifie visualiser le genius loci : le travail de l’architecte réside dans lá création de lieux signifiants qui aident l’homme à habiter.’’.
[4] Norberg-Schulz, Christian, Genius Loci, Paysage, Ambience, Architecture, Pierre Mardaga éditeur, pág.10.
[5] Norberg-Schulz, Christian, Genius Loci, Paysage, Ambience, Architecture, Pierre Mardaga éditeur, pág.10.